Nesta página você pode conferir trechos do livro.
De tempos em tempos eles serão trocados, para que você possa ter uma noção melhor do que o espera nesta aventura.
O trecho que se segue apresenta Mariana e Farinha, integrantes da "Companhia Teçaya de Comédia". O momento mistura um leve de toque de humor com o suspense da situação.
05 de maio de 1725
“Companhia Teçaya
de Comédia” ou “Não
fareje, tubarão”
Abaixo se confere o momento em que o grupo expedicionário da qual Ana Catarina faz parte é confrontado com algo... diferente.
De tempos em tempos eles serão trocados, para que você possa ter uma noção melhor do que o espera nesta aventura.
O trecho que se segue apresenta Mariana e Farinha, integrantes da "Companhia Teçaya de Comédia". O momento mistura um leve de toque de humor com o suspense da situação.
05 de maio de 1725
“Companhia Teçaya
de Comédia” ou “Não
fareje, tubarão”
No horizonte, uma nuvem solitária tentava encorpar-se para
anunciar futuros projetos de chuva. O vento, seu cúmplice nessa empreitada,
levantava a poeira e o vestido das moças... Das mais simples — sempre absoluta
maioria — e das mais nobres e bem vestidas que, naquele dia em especial, eram
um pouco mais numerosas do que o normal. A placa com o nome “Companhia Teçaya
de Comédia”, pendurada em um prego solitário sobre a carroça, balançava, proporcionando,
ao bater na madeira do corpo do veículo, um barulho semelhante ao dos tambores
de anunciação. Os mesmos tambores que, em espetáculos de circo, anunciavam o
auge de alguma atração. Talvez este fosse o caso...
Era de praxe. Mesmo depois de tantos anos de palco, Mariana não
conseguia impedir seus joelhos de tremerem ligeiramente ao saber que ia entrar em
cena. Nesse instante, entretanto, estava particularmente nervosa. Sabia, em seu
íntimo, que remexiam em ninho de abelhas... O fato é que, Quierilli, aquele
cabeça dura, filho de uma porca com uma loba, gostava de mexer com a política
local e, assim, sempre incluir em suas obras trechos referentes ao que pensava
daquelas coisas. Eram comentários, diálogos, sutis críticas — nem sempre tão
sutis — ao sistema ou a fatos que o incomodassem a ponto de querer expressar
sua contrariedade através da arte. Muitíssimo nobre, não
fosse tão perigoso em algumas ocasiões.
Naquele final de tarde, o prefeito do povoado, o ilustríssimo e
perigosíssimo — como era sabido em toda a região — Castro Figueira
encontrava-se na plateia. E no texto escrito por Quierilli, o que havia?
Críticas aos impostos reais, dos quais Castro era a favor; irônicos comentários
a respeito da luta entre os paulistas e os emboabas, da qual ele participara e,
de alguma maneira, se beneficiara. E, o fecho dourado da tumba, que Mariana
tinha a nítida impressão de estar encomendando junto com seus companheiros de
palco: uma pequena, mas não insignificante menção ao assassinato que teria sido
realizado por uma figura ilustre e poderosa. Referência inominada, porém de óbvia
associação.
Ao olhar para os montes verdes construindo o belo cenário de
fundo, a memória de Mariana fugia ao passado, reencontrando o fulgor das matas
e o olhar resplandecente de sua única amiga naqueles tempos difíceis. Não era nada
fácil para uma criança crescer por aquelas paragens. Ela sabia disso bem demais.
Por este motivo, o nó no peito que sentiu ao observar os pequenos na platéia.
Ao retornar à dura realidade percebia seus joelhos tremerem
involuntariamente e as gotas de suor que respingavam no assoalho da carroça.
Enxugou nervosamente o rosto e passou um pouco mais de base na esperança de mantê-lo
seco o maior tempo possível... A tal da base, na verdade, era uma substância que emanava um fedor quase insuportável, que Quierilli
disse ter trazido da França e que, segundo as palavras dele, era o que havia de
mais moderno em maquiagem no mundo inteiro. Mariana poderia viver muito bem com
seus apetrechos completamente ultrapassados mas, com certeza, muito mais
cheirosos.
Seus companheiros entravam em cena intercaladamente e soltavam
palavras que, naqueles momentos escapavam ao registro consciente de Mariana, tamanha
era a sua concentração, temerosa do que estaria por vir.
— Mariana! — uma voz interrompeu suas reflexões. — Mariana, é tua
deixa!
Ela permaneceu estática. Olhou para o rosto pintado de Farinha. A
máscara pendurada na mão esquerda. Quantas vezes tinham enfrentado tomates e
coisas piores, inclusive uma turba enfurecida em seus calcanhares, por causa da
teimosia obstinada de Quierilli? Claro que teimosia obstinada era
uma redundância, mas também era uma clara definição das atitudes
daquele homem.
— Mariana...
— Já estou indo, Farinha! — respondeu rispidamente.
Se ela não fosse tão apaixonada por aquele louco, se ele não fosse
tão sedutor em seus discursos a respeito da força da arte e da responsabilidade
do artista e todo o resto de coisas que falava para embriagar ideologicamente toda
a trupe... Juro, meu Deus. Juro por tudo que há de mais sagrado que
se escaparmos desta situação inteiros, devoto minha vida ao
Salvador, assim como queria tanto minha falecida mãezinha.
O palco rangeu sob o peso de seus passos. Ao olhar para Quierilli
pôde perceber o tamanho de seu júbilo com o espetáculo. O infeliz, na maioria
das vezes, não media nem percebia o tamanho das enrascadas em que enfiava a companhia.
Respirou profundamente. Que ninguém perceba o subtexto. Meu Deus, faça
com que ninguém note a crítica inserida no texto. Faça com que, como sempre
repete Farinha, que se dizia primo distante de piratas, o tubarão não fareje o
cheiro de sangue.
— Quem és tu, homem desafortunado? — iniciou sua parte no
interlóquio. Seus joelhos não paravam de tremer.
Quierilli, já em cena, virou o corpo de maneira absolutamente
canastrona, sem poder ou mesmo tentar evitar um sorriso contente pela entrada
tardia de Mariana.
— Como, quem sou eu? Não sabes tu? Sou o dono destas terras. Aqui
encontrei meu reino. Sou o dono destas pedras. — Lá vai ele, pensou Mariana. Este
é o momento em que critica “sutilmente” o sistema de governo da região. Quierilli
deve estar perto do êxtase.
Ela olhou para o público. Alguns exibiam um sorriso divertido,
mostrando que a companhia, mesmo depois de todos aqueles anos de estrada,
conseguia manter a qualidade do trabalho. A mulher usando aquele que parecia ser
o vestido mais brilhante dentre rodos os presentes, parecia dormir e roncar
levemente. Não se pode agradar todo mundo. Mariana observou,
então, Castro Figueira. A barba infinita. Um olhar duro, uma expressão
enigmática e ausente de quem assistia sem prestar atenção, de quem olhava
através das carcaças dos homens. Aquele homem tinha origens bandeirantes, era
mateiro por nascença. Homem rude que, certamente, tratava tudo a ferro e fogo.
Mariana suava frio. O estranho silêncio a fez, finalmente, notar
os olhos de Quierilli encarando-a fixamente e exigindo algum retorno para sua
fala anterior. Era sua deixa. Era o momento delicado que tanto temia. Deus. Que
o tubarão não fareje o cheiro do sangue.
— Eu sei de tudo, meu caro — seria impressão ou Figueira
remexera-se em seu assento?
— Sabes? Do que sabes?
Não fareje, tubarão. Não fareje, tubarão. Não fareje...
— Sei que foste tu que deste cabo da vida do enviado do reino!
Silêncio.
— O que significa isso?! — a voz soou como um trovão em dia de céu
limpo.
Farejou.
Abaixo se confere o momento em que o grupo expedicionário da qual Ana Catarina faz parte é confrontado com algo... diferente.
21 de julho de 1725
Macabra
confirmação
É apenas um animal, repetiu mentalmente mais uma
vez. Outro urro ecoou na floresta. Um ruído perturbador, como o de um animal ferido
além do que deveria. Ou pior: como um rouco e ensurdecedor aviso de mau agouro
para quem compartilhasse a floresta com o temerário dono daquela voz.
Os companheiros de grupo se entreolharam
novamente, cada um expressando em seu rosto uma preocupação crescente.
“O mapinguari chega gritando, trazendo em seu
grito toda a raiva das profundezas da terra. Seu berro é prenúncio de medo e
dor para aquele que estiver por perto. Somente o tolo não entenderia e
aceitaria sua sina.”
Mesmo não sendo um monstro, o dono daquele berro
parecia intimidador o bastante para deixar o grupo preocupado. A imaginação de
Ana Catarina brincava sadicamente com imagens de monstruosas criaturas,
enquanto sua razão tentava domar seus devaneios. Não conseguia impedir seu
coração de acelerar ou sua pele de ficar toda arrepiada.
De repente, um estrondo distante. Barulho de
árvores caindo. Não de grossos galhos ou de animais, mas árvores mesmo. Algumas
árvores na floresta são tão grandes que a queda de um único indivíduo leva
consigo uma grande quantidade da mata em volta, provocando um escarcéu que pode
ser ouvido a enormes distâncias. Não havia sinal de tempestade ou de vento com
força suficiente para causar aquele evento. Cupins? Alguma coisa diferente
tinha provocado a queda da árvore? Algo que necessariamente precisaria ter
tamanho e força suficientes para conseguir o feito. Que animal seria capaz
daquilo? Não havia dúvidas na imagem instantânea formada na mente de todos.
“Ele mora na região para onde vocês se encaminham.
Ele é o dono daquela região. Se invadirem o território dele, ele atacará e
matará a todos.”
Ana aproximou-se instintivamente de João Pereira e
quase o segurou pelo braço, detendo-se a tempo. O grupo estava assustado,
estagnado, apenas olhando para a floresta imóvel e buscando captar relatos
sonoros do que estaria havendo. Uma revoada de pássaros em debandada iniciou o
que pareceu ser uma fuga generalizada de animais do que quer que estivesse
causando tudo aquilo.
Eduardo Vieira olhou preventivamente para as
árvores em volta, relembrando a história contada pelo índio. Elas eram altas e
os primeiros galhos se encontravam a vários metros do chão. Talvez para ele,
certamente também para João, seria possível uma escalada, mas o resto do grupo
não parecia em condições de realizar a mesma manobra. Então, Eduardo cruzou seu
olhar com o de João... E no instante em que se olharam, souberam. Era real.
Alguma coisa muito grande e forte parecia estar nas cercanias.
É real!
João Pereira pisou na fogueira com vontade,
chamando os outros para juntarem-se a ele. Freneticamente, todos se entregaram
ao trabalho de apagar aquelas chamas. Com certeza, elas não conseguiriam
cumprir o papel de repelir aquela criatura. Muito pelo contrário, naquele
momento o fogo funcionaria como um farol, anunciando sua posição para a suposta
ameaça. O medo parecia querer sufocar o peito de Ana. Aquele suspense era quase
pior do que a presença física de uma criatura medonha.
Outro estrondo, igual ao primeiro, mais perto.
Enormes árvores derrubavam bruscamente tudo que estava em seu caminho após
terem sido abatidas por algo mais poderoso. Nada de cupins ou árvores
apodrecidas. Era o monstro. Estava se aproximando. Aquela coisa parecia estar
vindo na direção deles.
“O mapinguari é insaciável. Ele come tudo o que vê
pela frente. Ele devora a alma dos homens.”
— Muito bem. Eis o que vamos fazer: eu, Ana
Catarina e Joaquim vamos fugir na direção do rio, vocês três sobem na direção
contrária às montanhas e tentam entrar nas pequenas furnas que existem entre as
rochas que passamos esta tarde. Com sorte, esta coisa não conseguirá
esgueirar-se pelas cavidades — organizou João Pereira, oficializando aquilo de
que todos já tinham certeza: estavam correndo risco verdadeiro.
— E nós? E nós? — O ex-padre tremia como vara
verde. — Vamos morrer? Por que não vamos todos para as furnas?
— Porque não sei se este artifício adiantará.
Dividindo o grupo, aumentamos pelo menos em cinquenta por cento nossas chances
de sobrevivência. Nós tentaremos o rio. O bicho pode não gostar de água. As
chances são as mesmas. Vamos!
Todos concordaram. Não havia tempo para dúvidas ou
hesitações. Dividir o grupo parecia insensato, mas o raciocínio de João era
justificável. Por mais cético que fosse, a imagem de um monstro aproximando-se
rapidamente do grupo tornara-se inevitável. Algo contra o qual suas armas certamente
nada poderiam fazer. Dividir o grupo poderia confundir a criatura e dar chance de
sobrevivência para, pelo menos, metade deles.